terça-feira, 2 de setembro de 2014

Ziraldo - Entrevista Revista Isto É

Ziraldo Alves Pinto

Pintor, jornalista, teatrólogo, chargista, caricaturista e escritor. Ziraldo Alves Pinto – cujo nome é a combinação do apelido da mãe, Zizinha, com o nome do pai, Geraldo – completa 82 anos em outubro, mas nem de longe lembra um cansado octogenário às vésperas da aposentadoria. “Estou com uma disposição de cão”, diz ele, um dos maiores nomes da literatura infantil brasileira, recordista de vendas de um único título, “O Menino Maluquinho”, lançado em 1980 e com mais de três milhões de cópias vendidas. Para as crianças, Ziraldo lança agora um livro sobre garotos de rua intitulado “Um Menino Chamado Raddysson e Mais os Meninos de Portinari”. A obra é ilustrada com fragmentos de quadros de Cândido Portinari (1903-1962) e o mural “Jogos Infantis”, também do pintor brasileiro. Ziraldo explica a escolha do nome de seu personagem, um menino que nasceu na barriga da miséria: “Quando a mãe bota um nome desses no filho, ela quer dizer: não quero que meu filho seja um “Zé” qualquer”. 

ISTOÉ - O sr. autografa muito em escolas. Encontra pequenos leitores? 
ZIRALDO - Visito escolas e não vejo crianças com livro na mão. O que vejo é professora mal paga que luta por salário. Não tem ditado na escola fundamental brasileira, não tem mais caderno de caligrafia. Ninguém substitui o dedo pelo botão. A mão vai durar muitos séculos ainda. A letra é fundamental para poder se conectar com o cérebro. 
ISTOÉ - Os livros não são valorizados? 
ZIRALDO - A família brasileira não dá livro de presente, dá CD. As pessoas têm que entender que quando você dá um livro de presente, dá um elogio junto. A sensação de quem recebe um livro é a de que a pessoa que deu confia nele e o acha inteligente. O livro é gênero de primeira necessidade e devia estar na cesta básica. É um alimento para a alma. 
ISTOÉ - Seus personagens sempre foram lúdicos. Por que resolveu escrever sobre meninos de rua? 
ZIRALDO - Há muito tempo queria fazer uma história sobre eles. Mas, para falar sobre criança, você tem que entender profundamente o sentimento do personagem. Os meninos que descrevi nas minhas histórias ou são meninos que eu fui ou com quem convivi. Sei como se sentem, como sofrem, como reagem ao mundo. Agora, como o menino de rua sofre, como é impactado pela vida, como se julga no meio em que está vivendo, eu não sabia. Recorri às minhas lembranças de quatro décadas atrás, quando morava em Copacabana (zona sul carioca) e observava os meninos de rua. Tive certo cuidado para fazer a história, para evitar uma coisa sentimentaloide, de carregar na infelicidade dele. Mas era um menino que eu queria colocar na minha coleção de meninos. 
ISTO É - E por que resolveu ilustrar com obras de Portinari, já que é ilustrador também? 
ZIRALDO - Porque uma das dificuldades que eu tinha era como ilustrar os meninos de rua. Afinal, fazer uma caricatura não ficaria bem. Mas, outro dia, fui ao prédio do Palácio Capanema, no Centro do Rio, e lá tem um mural do Cândido Portinari (1903-1962) que se chama “Jogos Infantis”. O menino é muito presente na obra de Portinari. E nos “Jogos Infantis” está lá o garoto de rua pulando o muro, correndo da polícia. Tudo na visão de Portinari. Aí, acabei achando um caminho para contar a história de um grupo de meninos, em que o personagem principal se chama Raddysson. ISTOÉ - Um menino de rua brasileiro com esse nome? 
ZIRALDO - É interessante. Você não encontra nas favelas ou nas periferias nenhuma criança chamada Pedro, Manoel, Antonio, Miguel. Nenhuma menina chamada Rita, Maria. É tudo Wadisson, Kellen, Raddysson, Riverson. Os nomes mais incríveis! E descobri que esses nomes são sinônimos da palavra esperança. Quando a mãe bota um nome desses no filho, ela quer dizer: não quero que meu filho seja um “Zé” qualquer. Os pais não sonham que o filho arrume um emprego. Eles têm um grande sonho: que a filha seja, por exemplo, uma musa do cinema. Daí a batizam de “Maynara Keller”. 
ISTOÉ - Alguma história real o inspirou? 
ZIRALDO - No livro, tem uma menina chamada Rosykeller. Ela se salva porque sabe e gosta de ler. A história da Rosykeller foi pinçada da realidade. É uma menina que está se formando em medicina, em Cuba. Uma ex-menina de rua. Aí inventei a história dessa menina, o que a levou a gostar de ler, quem a ajudou. E essas são as únicas esperanças verdadeiras para essas crianças. Elas só se salvam se forem boas de bola, como o Raddysson, se aparecer alguém que as ajude ou se souberem ler. 
ISTOÉ - O que acha do movimento pela redução da maioridade penal de 18 anos para 16? 
ZIRALDO - A sociedade não consegue proteger a criança. Não está organizada para lidar com o menor, e a saída mais fácil é reduzir a maioridade penal. Por outro lado, a informação que circula na sociedade é a de que o menino de 16 anos pode praticar crime porque é menor. Eles sabem que estão protegidos pela legislação. É um recurso que eles têm. A vida ofereceu para eles isso. É uma situação complexa. Na Inglaterra, quando se comprova que o menino tem discernimento do que é certo e errado, ele é tratado como adulto. 
ISTOÉ - Como chegar bem aos 80 anos? 
ZIRALDO - O segredo é trabalhar. Quando a vida oferece a oportunidade de viver fazendo o que gosta, é muito bom. O meu lazer é ficar aqui desenhando. Tenho tubo de tintas com 40 anos, meus pincéis têm mais de 50. Minha prancheta também tem mais de meio século. Não saio daqui (do estúdio na Lagoa Rodrigo de Freitas, zona sul do Rio). Fico desenhando e guardando. Tenho uma pilha de desenhos. Mas a passagem do tempo também faz testemunhar a morte de muitos amigos. Uma vez cheguei ao cemitério São João Batista e o funcionário veio com essa: “Seu Ziraldo, o senhor está enterrando é gente, viu”? Todos os meus amigos que fizeram 80 anos antes de mim não chegaram aos 90. Acho que o único que está chegando é o Lan (caricaturista italiano, de 89 anos, radicado no Brasil). Millôr (Fernandes 1923-2012) ficou para trás, Chico Anysio (1931-2012), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), todos já foram. É difícil atravessar essa década, de 80 para 90. E o que vou fazer na vida com 90 anos? Somente ver a descendência se arrumando. Fora isso, é uma chatice. Agora, estou com disposição de cão. Mas não sei se com 90 anos terei essa mesma disposição. 
ISTOÉ - A morte o assusta? 
ZIRALDO - Não. Depois que a minha mulher morreu (Vilma Gontijo Alves Pinto, de infarto, em 2000. Hoje é casado com Márcia, sua prima), perdi completamente o medo de morrer. Nem questionar filosoficamente a morte me ocorre. Não acredito que algum ser humano tenha feito planos para viver até os 80 anos. ISTOÉ - O sr. fez planos para viver até que idade? 
ZIRALDO - Até 68 anos, quando entrava no século XXI: “Quero ficar vivo para ver o ano 2000. Isso me basta”, eu dizia. Esse plano era meu e da minha mulher. Mas ela morreu no final do ano 2000. E eu não tinha projeto nenhum para chegar a 2014. Agora, ficamos chocados com a morte de Eduardo Campos (1965-2014). Foi muito comovente a morte do Eduardo porque ele tinha uma cara de anjo, uma cara pura. Todo mundo que conviveu com ele tinha muito boa referência do jeitão doce e conciliador dele. E ele tinha uma coisa bonita: a família grande, cinco filhos. 
ISTOÉ - O que acha da candidatura Marina Silva à presidente em substituição a Campos (PSB)? 
ZIRALDO - Fiquei muito amigo da Marina quando ela apareceu. Sempre foi muito carinhosa comigo. Eu desejo muitas felicidades à Marina. Ela é um dos grandes nomes da nossa história. 
ISTOÉ - Alterou seu voto em função dela? 
ZIRALDO - Não. Sou muito amigo do Aécio Neves (senador, candidato à Presidência pelo PSDB). Era amigo e sofri muito com a morte do avô dele, o Tancredo Neves (1910-1985). Mas outro dia me perguntaram pela presidenta Dilma. Tenho muita admiração por ela, uma moça que chegou à Presidência da República. Ela não está brincando em serviço. Não há nenhuma acusação em que ela tenha usado mal o dinheiro público ou se metido em jogadas desse tipo. Acho que o governo do Lula (2003-2010) e o da Dilma deixaram de fingir que pensavam no povo e pensaram no povo de verdade. Então, eu gosto dessa coisa da Dilma. Eu amo a Dilma! 
ISTOÉ - Mas o sr. está com Dilma ou com Aécio? 
ZIRALDO - Vamos ver o que vai acontecer. Para mim vai ser divertido: se ganhar a Dilma, está bom. Se ganhar o Aécio, está bom. Estou em uma posição ótima. Tenho acesso aos dois. Voto é secreto. Vou ficar na moita. Já participei demais dessas coisas. Tem 50 anos que eu estou assinando manifesto, fazendo passeata, escondendo amigo nos aparelhos, sendo preso. Agora chega. Fui preso três vezes, passei mais de 100 dias na cadeia. Qualquer coisa que acontecia, mandavam prender a mim e ao (jornalista) Paulo Francis (1930-1997). 
ISTOÉ - A Comissão Nacional da Verdade tem ajudado a elucidar crimes desse passado sombrio? 
ZIRALDO - A luta do povo brasileiro avançou muito, mas não penalizamos devidamente os algozes do Brasil. Os argentinos já prenderam, condenaram e a gente fica com essa generosidade que joga contra. A Comissão da Verdade tinha que ter caráter punitivo.

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